Das 100 UBS analisadas nas regiões metropolitanas do Sudeste, 35 não forneceram qualquer informação sobre o funcionamento
Por Bruna Rezende Leite, Júlia Cruz e Pedro Di Marco
Publicado originalmente em: https://projetocolabora.com.br/ods3/sus-represa-consultas-e-pode-ter-explosao-de-doenca/
Em março de 2020, por conta da pandemia, Unidades Básicas de Saúde (UBS) interromperam a marcação de consultas para acompanhamento, tratamento e prevenção de novas doenças no SUS. Foram até 11 meses de paralisação de um serviço essencial do qual 7 em cada 10 brasileiros dependem para receber qualquer tipo de tratamento médico. Os dados recolhidos em 100 dessas Unidades Básicas de Saúde, na Região Sudeste, apontam que o represamento de doenças crônicas causado por essa paralisação pode gerar problemas ainda maiores para a saúde pública ao longo de 2021.
Das 100 UBSs analisadas até fevereiro deste ano, 44 haviam interrompido a marcação de novas consultas por pelo menos cinco meses, 18 funcionaram com redução dos agendamentos, 35 não atendiam ao telefone e nove unidades ainda não haviam retomado o agendamento de novas consultas, totalizando 11 meses de interrupção do sistema. De todas essas unidades, apenas 5% possibilitam a marcação da consulta pelo telefone ou aplicativo. Nas demais, o agendamento deveria ser realizado apenas presencialmente, contrariando as recomendações da OMS sobre distanciamento social.
Segundo Elyne Engstrom, médica, pesquisadora, doutora e coordenadora do mestrado em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, a falta de um protocolo para a flexibilização do atendimento pode trazer graves consequências para o quadro clínico de alguns pacientes. “O que está acontecendo é uma barreira de acesso. Quando não há atendimento, a pessoa fica em casa, não se trata e o impacto é que muitas doenças evitáveis acabam aumentando, desde as doenças infecciosas até às doenças crônicas não transmissíveis. Existe uma lista de doenças precoces, diagnosticadas na Atenção Primária, que se você tratar, evitará mais internações. É essencial que a administração municipal acompanhe esse índice porque se o diabético complica, a equipe terá que lidar com a infecção descompensada, que pode gerar amputações do pé sem necessidade. Assim acontece também com o agravamento da hipertensão não assistida, que pode causar derrames, problemas de coração, infarte, doenças mentais, como depressão, e doenças neurológicas, como a epilepsia. Se mantivermos esse represamento sem estabelecer uma prioridade na linha de cuidados e realizar uma gestão de casos, teremos impactos sérios na saúde da população que vão ser sentidos em curto e médio prazo”.
O colapso do sistema, para além da Covid-19
Mesmo com a recomendação da Organização Mundial da Saúde para que fosse respeitado o distanciamento social, em Unidades Básicas de Saúde no Jardim Fortaleza, em Guarulhos, São Paulo, na Gávea e Vila Isabel, no Rio de Janeiro, o paciente era obrigado a estar presente na unidade antes de seu horário de abertura, às 7h da manhã, para disputar uma vaga. Quando conseguia, esse paciente se deparava com locais aglomerados e com fila de espera de até quatro horas.
Uma alternativa encontrada para amenizar a situação em algumas UBSs, foi estabelecer como prioridade os atendimentos de urgência e emergência e o acompanhamento de grupos de risco. A classificação desses grupos, no entanto, variava de unidade para unidade. Em Guarulhos, região metropolitana de São Paulo, algumas deixavam as consultas extraordinárias para os portadores de doenças crônicas, como hipertensão e diabetes. Já em outras, as gestantes e crianças de até 6 anos eram prioritárias. Na cidade de Betim, em Minas Gerais, as gestantes também formaram o grupo que seguiu sendo atendido.
Cada unidade de saúde atende uma região da cidade. Quem precisa de atendimento, deve esperar pela disponibilidade na UBS mais próxima de sua residência. Mas, às vezes, a espera é longa. Dona Eunice da Silva, de 73 anos, que faz tratamento para hipertensão, conta que sua unidade ficou anos sem ter médicos suficientes para todos, gerando disputa de vagas e demora de até nove meses para o atendimento. Quando a pandemia chegou, sua consulta foi cancelada, exigindo mais seis meses de espera. Com a retomada dos agendamentos em setembro, conseguiu marcar para dezembro. Mas, na esperança de pedir a troca do remédio de pressão, acabou descobrindo que o médico da unidade havia se demitido e os prazos tornaram-se, mais uma vez, indeterminados.
A falta do médico na unidade que permitiria o acesso de Eunice a uma consulta, fez com que, somente nos últimos três meses, ela tivesse que recorrer dez vezes ao pronto socorro. Quanto a isso, a Dra. Elyne Engstrom reforça: “Tem que haver uma gestão dessa lista de espera, junto a um protocolo para flexibilização somado a uma sensibilidade da equipe. Deve-se atender primeiro quem precisa mais, analisando o prontuário daquele paciente, o que poderia ser feito pelo telefone. Infelizmente a gente está no momento de adotar uma política de redução de danos. Não se aplica ter uma agenda para daqui a seis meses, assim como não podemos atender sem critérios, baseado apenas em quem marcou a consulta primeiro”.
Depoimento de Eunice da Silva, moradora da Zona Leste de São Paulo
Impactos a longo prazo
Além dos pacientes com doenças crônicas, o grupo das crianças de colo também foi impactado pelo adiamento das consultas. Aluísio Gomes da Silva, médico e diretor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense, explica: “Nos primeiros meses de vida, uma criança vai muito ao serviço de saúde por causa de vacina e controle de peso. Se nesse período de pandemia ela não foi encaminhada a nenhum hospital, a cobertura vacinal certamente estará baixa. Então ela pode, na primeira oportunidade, ter doenças que são prevenidas com a vacina, como o sarampo. Assim, corremos o risco de ter um novo surto”.
A paralisação dos agendamentos atinge também os diagnósticos de novas doenças, assim como o valor que terá de ser investido em seu tratamento. Uma pesquisa publicada em 2016 no Observatório de Oncologia da Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia, apontou que diagnósticos tardios de câncer de mama chegam a custar cinco vezes mais caros quando identificados no estágio três, quando o tratamento envolve mais recursos, diminuindo as chances de cura e aumentando o sofrimento do paciente.
Cida Neves, moradora da Zona Leste de São Paulo, ilustra a agonia de quem contou os dias para a volta do atendimento. A descoberta de um nódulo no seio em 2019 foi feita a partir do seu próprio toque. Cida seria a terceira da família com chance de desenvolver câncer de mama, pois sua mãe e irmã já tinham passado pela doença. Na lista de espera para fazer a mamografia desde fevereiro de 2020 e sem previsão de quando os agendamentos retornariam, Cida pagou uma consulta em uma clínica popular, pela qual também realizou o exame. Somente em setembro ela foi contactada pela UBS.
"Quando fica grave a gente até paga uma consulta ou outra. Dá um jeito, né? Mas e quando tem um monte de médico pra passar?", Cida Neves, moradora da Zona Leste de São Paulo
Júlia Valverde, 22, também moradora da Zona Leste de São Paulo, teve, assim como Cida, que recorrer ao setor privado para conseguir atendimento. A jovem que estava sofrendo com alterações hormonais, acabou por descobrir micro cistos nos ovários. Este é um problema hormonal caracterizado principalmente pela irregularidade menstrual. Entre os sintomas mais leves estão a aparição de acne e excesso de pelo, mas em casos graves também pode levar a problemas como depressão e infertilidade.
Apesar de Cida e Júlia terem conseguido recorrer à saúde privada, essa não é a realidade da maioria dos brasileiros. Segundo dados de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 70% da população depende exclusivamente do atendimento público para cuidados com a saúde. Contudo, se contabilizarmos a parcela da população que só tem acesso a um plano de saúde privado em função do vínculo com a empresa em que trabalha, esse número será ainda maior, sobretudo se considerarmos a alta do desemprego durante a pandemia.
Teresa Monteiro, mestra em enfermagem pela UniRio e enfermeira no Hospital Universitário Antônio Pedro por 33 anos, explica: “No passado, ninguém tinha plano de saúde. Mais do que nunca essa pandemia veio demonstrar a necessidade de uma assistência pública, gratuita, de qualidade e efetiva. A dependência da população brasileira, em sua grande maioria, é totalmente do SUS, para a vacinação, internações, cirurgias, ações de prevenção e tratamento. Inclusive o medicamentoso. Estamos ficando cada vez mais dependentes. Houve uma debandada incrível dos planos de saúde pelo desemprego. Então quando uma pessoa perde um emprego e não pode mais ficar pagando o plano de saúde ela vai procurar o SUS, porque ela tem direito”.
Consultas pelo celular
Elielso de Souza, que atuou como chefe de enfermagem da Unidade de Saúde da Família em São Tomé das Letras, no interior de Minas Gerais, acredita que há uma alternativa para mitigar os efeitos da pandemia na vida da população. Segundo ele, o acompanhamento de pacientes por telefone foi essencial para a manutenção da saúde durante os meses de paralisação. “Realmente, o monitoramento através de meios eletrônicos deu uma minimizada bem interessante. A cidade é pequena, então a administração dessas adversidades é muito mais tranquila”, conta o enfermeiro que também atua na equipe de saúde mental.
Já Teresa Monteiro não crê que o sistema irá funcionar em outras cidades por falta de estrutura tanto por parte da rede de saúde, quanto da população, que muitas vezes não tem acesso a celulares e internet. Monteiro questiona também a ética dos atendimentos à distância: “É temeroso, porque o paciente quer ser visto, quer ser examinado. O próprio profissional da saúde fica inseguro em fazer esse tipo de coisa. Eu acho que é possível sim usá-lo em algumas situações, mas ainda não temos essa estrutura para fazer o atendimento remoto”, diz Monteiro.
Governança Municipal
Além do atendimento eletrônico, outro ponto que se mostrou importante para remediar as consequências da paralisação foi a capacidade de planejamento dos governantes. Em cidades nas quais houve estratégias mais eficazes de prevenção contra a disseminação da covid-19, o SUS manteve um padrão de atendimento que não deixou a população sem cuidados médicos. Isso se dá porque nessas cidades a taxa de contaminação pela doença foi mais baixa, o que oferece menos risco aos profissionais de saúde e permite a continuidade de seus serviços. Esse é o caso de cidades como Niterói (RJ) e Diadema (SP).
De acordo com o boletim divulgado no dia 4 de novembro pela Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, Niterói foi a cidade, dentre as cinco mais populosas da região metropolitana do estado, que teve o menor número de óbitos causados pela SARS-CoV-2. Para Aluísio Gomes da Silva, isso é consequência de quase 50 anos de desenvolvimento da saúde pública no município. “Há um investimento histórico de Niterói na saúde. É obrigação do município desenvolver saúde desde a década de 1990, mas Niterói faz isso desde o final de 1970. A maioria dos municípios começou a se organizar depois de março, enquanto Niterói já estava pronta em janeiro. Então essa é uma diferença muito grande: Niterói teve a tomada de decisão conjunta com todas as secretarias do governo; teve a organização de uma estrutura prévia de sistema de saúde, alinhado com universidades e base científica, além de ter investido em proteção social”.
Procuradas, as Secretarias Municipais de Saúde (SMSs) das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo disseram que “o enfrentamento da pandemia da covid-19 exigiu a reorganização dos atendimentos nas unidades de atenção primária”. Em nota emitida pelas assessorias, elas argumentaram que estão fazendo o possível para “reestabelecer o quanto antes o atendimento conforme preconizado em suas carteiras de serviços, atendendo com rigor às regras de proteção estabelecidas por conta da pandemia da covid-19.”
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