A história da maior festa do folclore brasileiro
Fotografias por Michael Dantas / Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Amazonas
Arte da capa por Marco Serra
(Originalmente publicado em Revista O Prelo (ioerj.com.br)
Surgiu no Ceará, trouxe um pouco do Maranhão e desembocou no Amazonas. Trocaram o sacerdote, ressuscitaram o boi, dividiram-no em dois e o que era Bumba Meu Boi se tornou Boi Bumbá. A segunda maior celebração popular do país é de origem nordestina, mas se consolidou com sotaque amazonense e toque final carioca, com a inspiração das grandes alegorias carnavalescas. Essa festa é o Festival Folclórico de Parintins, a maior manifestação folclórica da América Latina, que ocorre anualmente junto às celebrações juninas no norte do país.
O festival que acontece a 420km de Manaus, em uma ilha no meio do Rio Amazonas, é reconhecido como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e faz parte do calendário oficial de eventos da cidade de Parintins.
A festa tem o enredo ditado pelos dois bois concorrentes, o Caprichoso representado pela cor azul e o Garantido, pelo vermelho. Diferente do carnaval carioca, onde as alegorias desfilam pela avenida, no Festival o evento parintinense toma o Bumbódromo como um palco — as alegorias não passam, elas apresentam-se como numa grande encenação teatral. Durante o espetáculo, cada um mostra um pedaço da cultura que originou o Bumbá, as características do seu boi, o folclore amazonense e as crenças brasileiras em um tema a ser discutido.
Tudo isso representado em alas, atos cênicos e todo aparato digno de grandes apresentações – como o mestre de cerimônia que narra a trama, fantasias e alegorias suntuosas – disputando o favoritismo do público e as notas dos dez jurados, geralmente profundos conhecedores do folclore que norteia os três dias do evento. O ponto alto fica por conta da porta-estandarte, responsável pela honrosa tarefa de carregar o símbolo do boi e da chamada cunhã poranga, a índia mais bonita de cada tribo.
“É a partir dos anos 1990, que o Festival de Parintins ganha um ar mais espetacularizado. Inclusive com o lançamento de toadas que ficaram famosas no mundo todo, como, por exemplo, o “Tic-tic-tac”, do Boi Garantido, que em 1996 chega às paradas de sucesso da França e que até hoje é uma música conhecida na Europa e na América do Sul”, conta o pesquisador João Gustavo Melo, especialista em cultura popular, comunicação, alegoria e patrimônio.
Tic tic tac – Boi Garantido | Responsável por popularizar o Festival de Parintis no Brasil e levar a cultura folclórica para a Europa e às Américas
O popular Bumbódromo, o Centro Cultural e Esportivo Amazonino Mendes, foi construído em formato de uma cabeça de boi e tem capacidade para receber até 35 mil pessoas, no município de Parintins.
Culturalmente, a relevância da festa está na consolidação da memória nordestina, que migrou para esse campo amazônico durante o ciclo da borracha e se fundiu com as culturas tradicionais da região. Nela é reverenciado a natureza e exaltada as histórias das culturas indígenas, caboclas, quilombolas e ribeirinhas dali.
O pesquisador João Melo, explica: “É importante a gente perceber como o Alto do Boi é adaptado, por exemplo, em terras amazônicas. A figura do padre que faz a ressurreição do boi, muito utilizada no Ceará e no Maranhão, é substituída pela figura do pajé, que é um personagem mais ligado às populações indígenas”.
Apesar disso, o universo indígena representado artisticamente nesses principais momentos do espetáculo, confere um tom exótico e heroico que não condiz exatamente com a realidade das etnias que vivem na região.
A espetacularização do indígena brasileiro no festival repercutiu uma imagem distorcida da realidade desses povos. A festa estimulou o surgimento de um novo olhar sobre o índio da Amazônia e sua cultura, partindo para uma reconstrução de novos valores da identidade regional. O espetáculo não só oculta, como disfarça o sofrimento dos índios urbanos e distancia a miséria dos que ainda permanecem em suas aldeias.
Para o pesquisador João Melo, o evento contribui ainda para a memória nacional, repensando, questionando e desconstruindo preconceitos arraigados nos folguedos – festas populares que enriquecem o folclore brasileiro e formados pela miscigenação das culturas indígena, africana e portuguesa. Em Parintins, “os dois bois, o Garantido e o Caprichoso, sempre debatem sobre essa questão da participação negra na sua constituição, inclusive como ato religioso, envolvendo a resistência às religiões de matrizes africanas, o racismo estrutural e todo o contexto do nosso passado colonial, ao mesmo tempo tão presente nos dias atuais”, argumenta.
Antes, a figura do branco colonizador, silenciava e calava a negritude local; hoje, o festival já está modificando isso. Irian conta que os espetáculos de 2017 a 2019, enfatizaram com muita propriedade e força, a presença negra nas manifestações culturais e na festa de Parintins. Porém nada que se comparasse ao episódio de 1988, quando o Caprichoso apresentou um porta-estandarte negro, exatamente no ano do centenário da abolição. Uma ousadia não repetida nos anos seguintes e jamais pensada nos anos anteriores. Assim, famílias negras pioneiras e protagonistas dessa grande brincadeira, foram simplesmente afastadas do cenário midiático que envolve o espetáculo, em uma clara apropriação indébita cultural, traduzida em discursos forjados que exploram o alicerce cultural mas negligenciam esses sujeitos e suas memórias, tirando literalmente essas pessoas de cena, de acordo com a avalição da professora.
Guardar os tesouros de vida
Para que a tradição e cultura do Boi Bumbá permaneça viva, é necessário que os mais velhos passem os ensinamentos da festa e suas origens para os mais novos. Até 2013, centenário do festival, que nasceu como uma brincadeira singela pelas ruas e vielas de Parintins, o exercício da memória era feito apenas oralmente. Mas a partir de projetos desenvolvidos pelo Boi Garantido e pelo Boi Caprichoso, a história dos mais antigos na tradição da toada começaram a ser documentadas.
A historiadora explica que é por meio da história oral que vão assinar uma pesquisa do ano de 2013 com as pessoas mais antigas do boi bumbá Caprichoso, e, em parceria a diretoria da Universo Audiovisual, e seu projeto Boi Fantasma, captaram as memórias do Garantido. “Assim, procuramos mapear as pessoas mais antigas da cidade, guardamos e somamos as suas narrativas. Não é uma tarefa fácil e nem sempre conseguimos esses contatos, em especial durante a pandemia, quando perdemos muitos dos nossos tesouros de vida”, lamenta Iriam.
Apesar da alteração estrutural da comunidade e sua consequente divisão por classes econômicas e etnias raciais, as maiores memórias do brincar de Boi ainda são transmitidas boca a boca, agregando e ampliando a participação da sociedade e introduzindo novos elementos e novas variáveis, culminando em adequações aos novos tempos e contextos.
A pesquisadora destaca que a fase atual é de constante transição e de transmissão do conhecimento para futuras gerações. “A minha geração conheceu o processo presencial da festa. Eu não sei se a minha filha vai ter esse privilégio, talvez ela só conheça o virtual, nossa realidade desde o ano passado”, lamenta.
Existe uma cobrança gigantesca sobre Parintins se é ou não cultura, se é indústria ou cultura pura. E na opinião de Irian, o conceito deve ser repensado, mas também reconfigurado, “pois mestre Lindolfo começou batendo o tambor de couro e terminou batendo tambor industrializado. Nem por isso ele deixou de ser o mestre Lindolfo”, exemplifica, citando o compositor amazonense, famoso por ser o fundador do Boi Garantido.
Ela ainda pondera que a cultura é do mundo, dinâmica e fluida, assim como nós, seres humanos, sempre nos ajustando e nos adequando às situações e cenários. “O que precisamos é encontrar o equilíbrio respeitoso entre o antes e o depois, passado e presente, sem desmerecer a vivência dos antigos nem a inovação trazida pelos jovens.”
A grandiosidade da festa e as reinvenções na pandemia
“Aquele artista ovacionado na rede, na televisão, paparicado pelo sistema de comunicação, estava sem comida na mesa”, Irian Butel, historiadora e pesquisadora da cultura dos bois
Apesar de se apresentar ao público nos últimos dias de junho, a preparação para o Festival Folclórico de Parintins tem início em julho do ano anterior. Assim, muito semelhante ao que acontece com os desfiles de carnaval no Rio de Janeiro, o evento amazonense emprega trabalhadores de diversas cidades que se dedicam durante todo o ano para que a festa possa acontecer. Com a chegada da pandemia no país e as novas medidas sanitárias, toda a equipe dos bois ficou desempregada e a atividade econômica na cidade foi fortemente impactada.
Somente em 2017, o Festival Folclórico de Parintins movimentou R$117 milhões na economia local e em 2019, último ano presencial da festa, chegou a receber 60 mil pessoas, segundo a Gerência de Registro de Fiscalização da Empresa Estadual de Turismo do Amazonas (Amazonastur).
“Quando a gente está nesse universo de produção, praticamente não temos vida social. Todo nosso foco está direcionado ao espetáculo de arena. E assim como eu, vários outros artistas que vivem de produção dessas festas do ciclo amazônico, tiveram suas rotinas totalmente alteradas entre 2020 e 2021. Aquele artista ovacionado nas redes sociais, na televisão, paparicado pela mídia, estava sem comida na mesa. Ninguém se preparou para um período tão longo de restrições”, explica Irian Butel.
A alternativa para sobreviver ao segundo ano de pandemia foi recorrer às Leis Aldir Blanc, que prevê auxílio financeiro a profissionais da área que sofreram com impacto das medidas de distanciamento social, ou seja, o “auxílio-emergencial” do setor cultural; e Rouanet, que permite que empresas ou pessoas físicas patrocinem produções como espetáculos, shows, exposições, livros ou filmes, e abatam o valor deste investimento de seus Impostos de Renda. Porém nem todos os pedidos e projetos foram aprovados, pois o grande desafio enfrentado por muitos artistas foi a falta de portifólio online que comprovasse as suas produções.
Mas aos que conseguiram o acesso aos auxílios, a arte do boi renasceu de outra forma. Pedro Evangelista, coreógrafo do Boi Caprichoso, decidiu resgatar suas habilidades de desenho e pintura e começou a vender quadros feitos de e.v.a, com a temática dos bois.
“Minha rotina era, de janeiro a janeiro, montando coreografias e apresentações para o festival. Com a pandemia tudo mudou completamente e com tempo livre resolvi investir em uma nova arte”, conta Pedro.
Glaedson Azevedo também tirava o sustento das festividades do boi. Ele que já trabalhou como vendedor de suvenires da festa e foi pintor do Boi Caprichoso, forma a terceira geração da família a trabalhar com o festival. Durante a pandemia, Glaedson se reinventou fazendo grafismos digitais com temáticas do boi e do folclore brasileiro.
“O parintiense desenvolveu uma linguagem artística muito peculiar, que se tornou conhecida no Brasil todo, especificamente por causa do festival. Por que existe um período em que o artista é valorizado e não é o ano inteiro, né? Então, nesse período é quando os artistas recebem um recurso maior para exercer a profissão. Quando foi dito que não haveria o festival, realmente deu um desespero, por que quem vai tirar dinheiro para investir em arte com o mercado em crise?”, explica Glaedson.
Segundo Pedro, a volta do festival é essencial e vai acontecer de maneira muito mais grandiosa. Já Glaedson enaltece a arte como parte do cidadão parintiense. Para ele, essa é a essência da cidade e o que promove o desenvolvimento da sociedade. Afinal, “a arte é a única forma de registro da existência humana”.
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